Budismo e trabalho: notas sobre 2 livros

Na busca por aproximar budismo e design estratégico que se iniciou com minha dissertação de mestrado, venho levantando uma série de referências sobre budismo e trabalho, uma intersecção que, como comentei nesse post, não é algo tão inusitado como poderia parecer. Desde o início de sua história o budismo se viu às voltas com questões organizacionais. Por exemplo, em Velho Caminho, Nuvens Brancas, uma das muitas biografias do Buda, escrita pelo mestre vietnamita Thich Nhat Hanh, é relatada a estruturação da primeira ordem monástica, que nasce da necessidade de abrigar professor e estudantes durante o período chuvoso do ano na Índia. O relato inclui todo tipo de complicação administrativa que envolve qualquer grupo humano tentando cumprir com determinadas tarefas individuais e coletivas. O que só ficou mais complexo ao longo dos séculos, na medida em que o budismo foi se institucionalizando.

Uso a expressão “trabalho” aqui de forma ampla e popular e não como um conceito da economia ou das ciências sociais. Não é o objetivo desse texto e nem da minha pesquisa, nesse momento, entrar nessa questão. Por trabalho, entenda-se aqui as tarefas que são realizadas em atividades profissionais ou em “serviço” (no sentido de voluntariado espiritual ou religioso). De fato, a maior parte dos livros sobre budismo e trabalho que conheci cobrem essas duas frentes sem o viés econômico ou sociológico, mas com um entendimento tácito que inclusive poderia inclui a ideia de projeto.

As duas primeiras referências teóricas (e não as únicas) que conheci conectando budismo e trabalho foram O Caminho da Habilidade de Tarthang Tulku e O Trabalho como Mestre de Arnaud Maitland. Ambas as obras, só encontradas em sebos, estão relacionadas ao conjunto de iniciativas fundadas pelo mestre de budismo tibetano Tarthang Tulku quando imigrou para os Estados Unidos em 1969 depois de ter residido, ensinado e trabalhado na Índia. Como é comum na história da diáspora do budismo tibetano no Ocidente, Tarthang Tulku estabeleceu um pequeno centro voltado ao ensino e prática de budismo e, à medida em que a comunidade em torno do centro foi crescendo, novas iniciativas foram sendo criadas para dar sustentação ao objetivo de preservar e divulgar o budismo tibetano. Assim surgiu a Nyingma Mandala, uma meta-organização que articula mais de 10 organizações nas áreas de ensino e prática budista, edição e impressão de livros, preservação da cultura tibetana, apoio a refugiados e pesquisa.

Foto: site Nyngma Rio

Um conjunto de organizações desse tamanho, que se espalha pelos Estados Unidos, Europa, América Latina e Ásia, não tem como se manter sem práticas de gestão. Da mesma forma, não tem como ser geridas de forma tradicional, usando apenas abordagens clássicas da administração – não apenas por sua complexidade, mas principalmente por sua natureza e intenção. São organizações com objetivos mais amplos e profundos do que simplesmente sobreviver, evoluir e se expandir como é o eixo da maior parte das organizações tradicionais. Por estarem fundamentadas no budismo, precisam ser pensadas e geridas de forma alinhadas com esta filosofia – o que nem sempre os métodos comuns de gestão permitem.

Pela necessidade de formalizar uma outra abordagem de trabalho e também para contemplar as necessidades da cultura americana (é comum ao budismo adaptar-se às culturas nas quais se estabelece), Tarthang Tulku concedeu, nos anos 70, uma série de palestras à sua comunidade sobre como as pessoas poderiam desenvolver-se espiritualmente enquanto estivessem trabalhando, ou seja, que não separassem sua atuação profissional de seu treinamento espiritual. Assim nasceu o livro e o treinamento O Caminho da Habilidade, que até hoje é oferecido pela Nyingma Mandala.

O livro, curto e de leitura rápida, é notável pela forma como oferece uma combinação de filosofia com métodos budistas em uma linguagem sem floreios e livre de qualquer terminologia técnica, com dicas e chaves de reflexão prontas para serem colocadas em prática no ambiente de trabalho por qualquer pessoa. Isso não significa, contudo, superficialidade ou fórmulas prontas. Budistas com certa experiência filosófica e prática reconhecerão nos capítulos curtos ensinamentos profundos comuns a diversas escolas e tradições. O texto é dividido em três grandes seções. “Atenção Plena” introduz a noção budista de liberdade interior perante os fenômenos externos, propõe que o ambiente de trabalho pode e deve ser uma arena para o desenvolvimento dessa liberdade e estabelece a relação com a respiração, com o corpo e com o tempo como pilares iniciais desse desenvolvimento. Sobre esta base, “Mudança” demonstra como lidar com obstáculos externos e internos que surgem no percurso. Por fim, os capítulos de “Compartilhar” ampliam o foco para além do indivíduo tratando de comunicação, cooperação e responsabilidade. Esse rápido percurso, da atenção ao compartilhamento reflete uma das propostas caras ao budismo que é o de nos treinarmos de dentro pra fora, cuidando de nossas questões internas com muito zelo antes de nos lançarmos na hoje popular missão de resolver os problemas do mundo – mesmo que seja do mundo do nosso trabalho.

Foto: Dharma Publishing

O Trabalho como Mestre, por sua vez, parte do relato de uma experiência de aplicação dos ensinamentos do Caminho da Habilidade e apresenta uma metodologia mais elaborada e estruturada para aplicação em organizações. O autor, Arnaud Maitland, aluno sênior e hoje professor na tradição de Tarthang Tulku, liderou um dos primeiros empreendimentos da Nyngma Mandala, uma gráfica comercial que presta a serviços ao mercado a fim de gerar renda para a impressão de livros budistas e outros projetos da mandala. O desafio da gráfica, relatado no livro, era o de ser competitiva e lucrativa sem ferir os princípios budistas, projeto aparentemente ambíguo mas sobre o qual o grupo se lança com determinação. O título do primeiríssimo capítulo do livro é marcante: “Cumprindo os Compromissos Financeiros”. Ele é seguido por “Uma Empresa de Primeira Linha” e só então vem a seção “Levando o Dharma para a Empresa”. Esses três primeiros capítulos focam mais no relato do caso do que no método, apresentado nas oito seções seguintes. E, por isso, estabelecem o tom pragmático que contrabalança e credibiliza os conteúdos espirituais mais abstratos. Estes expandem o conteúdo de O Caminho da Habilidade e são ligados a exemplos práticos do dia-a-dia da gráfica ou da vida clássica de escritório. E assim como no “livro raiz”, O Trabalho como Mestre vai do pragmático e concreto ao mais espiritual e abstrato mantendo por dentro uma fio que o conecta com consistência a uma escola e linhagem tradicional do budismo tibetano.

Esses dois livros compõem uma minúscula (mas bastante representativa) amostra do encontro de filosofias e métodos orientais com a marcante e influente cultura de trabalho norte-americana, a qual desde os anos 50 vem transbordando não somente para outras áreas do mundo como também para outras áreas da vida. Seu traço distintivo que merece ser observado e replicado é a capacidade de mesclar vida prática e prática espiritual mantendo o compromisso com as raízes filosóficas (epistemológicas e ontológicas) de sua escola e linhagem, as quais garantem a integridade de seus projetos e métodos

// março de 2024//

Referências:

MAITLAND, Arnaud. O trabalho como mestre: sabedoria do budismo tibetano para o sucesso empresarial. São Paulo: Dharma, 2003.

TULKU, Tarthang. O caminho da habilidade: formas suaves para um trabalho bem-sucedido. 10a edição. São Paulo: Cultrix, 2014.