Espiritualidade em projetos de design e comunicação

A aplicação de conhecimento espiritual em projetos, seja na iniciativa privada, no poder público ou no terceiro setor, é uma ideia que pode soar exótica, antissecular ou simplesmente picareta. A proposta desse texto, ao relatar e refletir sobre algumas experiências em uma universidade e em uma uma agência de publicidade com o conceito e o método budista de “estabelecer a motivação” é justamente estimular a conversa sobre a conexão entre espiritualidade e cultura projetual tentando desviar do exotismo, do proselitismo e do oportunismo, embora essa não seja uma tarefa fácil uma vez que tem sido comum o uso superficial de pedaços descontextualizados do budismo especialmente no mundo empresarial.

A rigor, a aplicação de conceitos e métodos budistas em ambientes de trabalho não deveria levantar suspeitas. Desde sua primeira expressão cultural, como uma disciplina espiritual monástica na Índia, o budismo sempre enfrentou e abordou questões organizacionais tanto na prática, criando e mantendo instituições ao longo de séculos, quanto na perspectiva de sua filosofia. No século 1, o filósofo budista indiano Nagarjuna aconselhou um rei sobre questões éticas da gestão no longo poema Carta a um Amigo; no século XIII, o fundador da escola japonesa Soto Zen, Dogen, escreveu sobre filosofia e prática cotidiana usando as atribuições da cozinha de um mosteiro como pano de fundo em Instruções ao Cozinheiro; em 1976, o lama tibetano Tarthang Tulku proferiu uma série de palestras sobre budismo no mercado de trabalho norte-americano, o que deu origem ao livro O Caminho da Habilidade. Para quem quer ir além da exploração corporativa do budismo, há muitas e boas fontes na qual mergulhar e essas são apenas uma pequena amostra.

Foto: treinamento em liderança e gestão no Dzongsar Khyentse Chökyi Lodrö Institute.

Desde que me conectei com o budismo, no final dos anos 90, venho tentando aplicar no dia-a-dia o que acho que aprendo em palestras, cursos e retiros mas até alguns anos atrás tinha muito pudor em ir além da minha prática mais íntima e pessoal, o trabalho interno, de dentro pra fora, sobre o qual professores e instrutores budistas autênticos comentam incessantemente ser o mais importante. Foi só em minha pesquisa de mestrado em 2018-2019, estimulado por minha orientadora, que me senti um pouco mais confortável em aplicar em projetos de design e comunicação algumas abordagens do budismo de forma mais expressa. Fiz um resumo da minha dissertação nessa seção desse mesmo site e esse artigo específico resume como apliquei a Gestão por Mandalas em um processo de design estratégico.

Em 2022, no artigo Spirituality Based Codesign, apresentado em 2022 na Participatory Design Conference, Karine Freire e eu expandimos nossa reflexão e defendemos que o conhecimento espiritual pode orientar processos, atitudes e comportamentos em projetos, mas é essencial que quem conduz tais projetos tenha intimidade e proficiência com a disciplina espiritual em questão, sem deixar de abrir espaço para a autorreflexão e a autocrítica sob pena de fazer um uso superficial ou proselitista de tal conhecimento.

É difícil mensurar o grau de intimidade e proficiência de uma pessoa em sua prática espiritual, mas na tentativa de esclarecer de onde parto quando aplico um conceito e método budista em meus trabalhos, talvez seja útil os leitores saberem o seguinte: 1) sou um simples estudante e praticante de budismo 2) faço uma pequena meditação formal todos os dias em minha casa 3) integro uma comunidade de centros de budismo tibetano como praticante e atuo como voluntário na área da comunicação 4) participo todo ano de diversas palestras, práticas e ao menos uma vez por ano de retiros de curta duração de 3 a 9 dias e, por fim, 5) não tenho conhecimento, experiência, formação ou autorização para ensinar budismo.

Dito isto, vamos às experiências.

Experiência 1: motivação em projetos acadêmicos de design, comunicação e inovação

 

Minha primeira experiência formal de aproximação de um conceito budista com projetos após o mestrado foi propondo a alunos dos cursos de graduação em Comunicação Digital e Gestão para Inovação e Liderança que “estabelecessem sua motivação” antes de iniciarem seus projetos de final de semestre. Motivação é um tema popular hoje, associado ao universo do treinamento esportivo, da liderança, dos coaches e de influenciadores digitais. O “discurso motivacional” tem farta expressão nas redes sociais na forma de frases, imagens e vídeos, às vezes acompanhado de seus autores, às vezes não, mas sempre com a intenção de “inspirar” ou, melhor dizendo, “empurrar” a audiência à frente, como um técnico de futebol na beira do campo gritando com seus jogadores. Essa ideia popular de motivação é associada a ser “provocado”, “sacudido”, como se o alvo da motivação precisasse de um movimento brusco e intenso externo para mobilizar seus recursos internos. A ideia de “estabelecer a motivação” no budismo é bem diferente.

Em “Uma Ética Para um Novo Milênio”, S.S. Dalai Lama traça a genealogia da expressão tibetana kun long, traduzida para o inglês como motivation mas com um significado mais amplo no seu original: kun significa “completamente” ou “das profundezas” e long “o ato de fazer algo se levantar, surgir ou despertar”; unidas e usadas no contexto budista essas duas partículas significam algo mais próximo de “estado geral do coração e mente” – lembrando que no budismo “coração e mente” não são entendidos separados, como ocorre na tradição ocidental de pensamento. Na maior parte das práticas do budismo tibetano, se inicia uma sessão de meditação (ou de qualquer outra atividade) com essa pequena preparação chamada “estabelecer a motivação”. Ou seja, o praticante busca colocar-se em um “estado geral de coração e mente” condizente com o objetivo de trazer benefícios a todos os seres e não apenas para si ou para os seus.

Essa preparação funciona como um rápido check-up de como está nosso coração e mente antes de iniciarmos a atividade e permite que, se nosso “estado geral” está desalinhado com o objetivo de trazer benefícios amplos, nós possamos redirecionar, configurar, ou seja, intencionalmente, de dentro pra fora, “estabelecer nossa motivação”. Através de alguns momentos de introspecção, nos comprometemos, em silêncio ou repetindo uma pequena prece, a realizar a atividade em questão de forma que ela não sirva apenas a nossos próprios interesses, mas que tenha um alcance mais amplo. É um método rápido e simples ancorado em conceitos profundos e específicos. Funciona como uma espécie de salvaguarda ético da prática espiritual, embora sempre haja o perigo de automatizarmos essa preparação diluindo seu efeito. Mantê-la viva e relevante é uma tarefa constante que acompanha toda e qualquer sessão de meditação.

Minha intenção ao usar a prática de “estabelecer a motivação” com meus alunos não era convertê-los ao budismo, mas inserir em seus processos de projeto um momento de reflexão e direcionamento ético, no sentido de ampliar seu olhar e compreender que, uma vez que seus projetos podem ter um impacto maior do que seu mundo individual, é importante que se reflita e direcione seu “estado geral de coração e mente” para gerar benefícios amplos, que vão além de seus interesses individuais ou de seu pequeno grupo. Isso não quer dizer, por outro lado, promover a megalomania, dizendo que aquele projeto específico vai “mudar o mundo”, como acontece em alguns ambientes contemporâneos, mas simplesmente reconhecer a nosso status interdependente – o que fazemos afeta nossa rede de relações, o que isso tem implicações éticas. Como diz o mestre vietnamita Thich Nhat Hanh, “ser é interser”.

No início de cada semestre ou de cada projeto, conduzi a prática de estabelecer a motivação da seguinte maneira:

  • Apresentei dois vídeos: “Como ser da ‘Equipe Humana’ no futuro digital” – TED Talk por Douglas Rushkoff ; e “Motivação Pura” – comentários de lamas do Chagdud Gonpa sobre motivação. Deste último vídeo, eu apresentava somente os primeiros três minutos, que tem uma mensagem mais universal;
  • A partir dos conteúdos dos vídeos, eu abria a discussão para o tema da motivação intrínseca;
  • A partir das discussões, dava aos alunos a tarefa de materializar sua motivação mais ampla e elevada na forma de um objeto que poderia ser construído ou montado; ele funcionaria como um amuleto. Essa ideia, inclusive, nasceu de uma conversa com um colega de budismo. Eu não estava querendo usar objetos budistas, então ele sugeriu “por que os aluno não propõem seus próprios objetos?”;
  • Esse amuleto deveria estar próximo dos alunos durante a fase de projeto, lembrando de sua motivação. Em algumas turmas, propus que o amuleto também fosse trazido e comentado no dia da apresentação dos projetos finais.

Quando utilizei essa prática com os alunos, não planejava escrever sobre ela. Lamento não ter entregue a eles, na época, algum tipo de questionário para auferir de forma menos parcial, de minha parte, o impacto da prática em seus projetos. Portanto, tudo que temos aqui são minhas próprias impressões, que organizei em três aprendizados principais:

1. Respiro: apesar do conteúdo “motivação” ter sido importante, observei em aula que os alunos se engajaram e verbalmente valorizaram os momentos abertos para contemplação e reflexão ética no início, meio e final do projeto. Vivemos em uma rotina tão acelerada que esses momentos são os primeiros a serem sacrificados em prol da entrega objetiva, mesmo que esta tenha implicações éticas. No início do semestre, eu dedicava quase meia aula para o tema; no meio, lembrava os alunos durante o projeto sobre seus amuletos; no final, também costumava abrir espaços durante a apresentação dos projetos para que os alunos lembrassem e mostrassem seus amuletos. Sem dúvida, um luxo que o espaço de estudo permite mas que não é sempre utilizado.

2. Materialização e Personalização: a ideia de objetos/amuletos foi inspirada pela disciplina de Experimentação em Design que tive no Mestrado, na qual tínhamos que produzir protótipos físicos a partir de artigos totalmente teóricos. Isso nos obrigava a pensar de maneira diferente sobre os artigos diversas vezes: quando líamos, quando produzíamos o protótipo e quando olhávamos os protótipos dos colegas, dando materialidade a reflexões e argumentos e fomentando uma discussão riquíssima. Da mesma forma, a produção de amuletos estimulou os alunos a pensarem durante mais tempo e por diferentes ângulos no tema da motivação e da ética de projeto; os amuletos funcionaram não apenas como depositários das propostas dos alunos mas também como provocadores e, mais tarde, como lembretes de suas reflexões. O fato deles mesmo terem que produzir seus amuletos também permitiu que se expressassem dentro de seus contextos e repertórios.

3. Conforme comentado sobre o artigo Spirituality Based Codesign, ancorei minha proposta na filosofia e prática budista pois é a disciplina espiritual com a qual tenho mais intimidade; isso me permitiu ter profundidade no entendimento teórico e prático ao mesmo tempo em que me permitia declarar a fonte dos exercícios e deixar claro aos alunos minha proximidade com esse tipo de abordagem e, portanto, meus vieses. A técnica não estava escondida sob um falso manto de neutralidade.

Experiência 2: motivação em um workshop em agência de comunicação

A segunda experiência formal com a prática de estabelecer a motivação foi na DZ Estúdio, agência de comunicação da qual sou Head de Planejamento. A DZ nasceu em 2005 como uma pequena produtora de websites e evoluiu ao longo de 18 anos para se tornar uma agência de cerca de 70 pessoas que planeja, cria, produz e ativa campanhas e conteúdos para clientes como Omo, Unilever, Nutrella, Yara Brasil, Sicredi, Coca Cola Shoes, entre outros.

Em 2022, criei, organizei e conduzi dois workshops com todos os colaboradores da agência para apresentar e exercitarmos juntos um novo processo e framework de planejamento e criação de campanhas. Cada workshop teve a duração de cerca de duas horas com momentos expositivos, criativos e de debate. Antes de iniciar cada workshop, mostrei aos grupos o diagrama abaixo e introduzi o conceito de motivação conforme é usado pelo budismo. Minha fala propôs que parássemos por alguns instantes para direcionar intencionalmente a motivação de participar do workshop e trabalhar nele: poderíamos fazê-lo em nosso próprio benefício, para crescer na agência, ou poderíamos ampliar essa intenção, pensando no bem e na evolução dos nossos colegas de área, de time de atendimento a cliente, ou mesmo em nossos clientes, os consumidores dos produtos dos nossos clientes, nossa família, a sociedade e assim por diante. Um convite para ampliar a motivação. A prática durou menos de 5 minutos.

Desta vez, disparei depois dos workshops um questionário online para toda a agência com duas perguntas simples e obtive respostas de 19 pessoas, uma amostra de 27% da agência. Para a pergunta “O que você sentiu durante o exercício de Motivação? O que você sentiu afetou de alguma forma o trabalho no workshop depois?” obtive três grupos de respostas:

1. Depoimentos sobre o baixo impacto ou importância da prática. Foram apenas três depoimentos desse tipo. Exemplo:

“Achei pouco tempo e não consegui me concentrar direto. O pensamento foi meio vago e na hora lembro que um celular tocou e aí eu perdi o alinhamento.”

2. Depoimentos que relatavam reflexão e impacto, mas de forma superficial. Foram 8 depoimentos desse tipo. Exemplo:

“Senti que de alguma forma aquilo ajudou a olha a dinâmica com outros olhos e querer me envolver mais”

3. Depoimentos que demonstram uma reflexão e um impacto maior no momento. Foram 8 depoimentos desse tipo. Exemplo:

“Em vez de olhar para o workshop como apenas uma tarefa/dinâmica da agência, ver isso como uma oportunidade de refinar meu trabalho e, consequentemente, aumentar minhas possibilidades de crescimento profissional. Como dito antes, afetou sim, pois ter esse objetivo (ou motivação) estabelecido ajuda a manter o foco e dar uma razão para aquilo que se faz além de cumprir agenda.

Independentemente do conteúdo dos depoimentos, todos eles demonstram o fato de que algum espaço de reflexão sobre o projeto que iria se iniciar foi aberto. Também é digno de nota o fato de que apenas dois respondentes trouxeram conteúdos vinculados discursivamente a aspectos éticos, sociais ou espirituais. Um exemplo:
“Pensei muito na minha família e em meus objetivos como ser humano, esse realinhamento afetou de forma positiva no trabalho pois aumentou a concentração no workshop.”

Claro: pegar as pessoas de surpresa com a proposta de uma reflexão ética rápida e isolada antes de um projeto não é a melhor forma de promover esse tipo de “estado geral de coração e mente”. No budismo, a prática de estabelecer a motivação é exercitada via repetição cotidiana, preferencialmente diária, antes de outras práticas de meditação, por exemplo. A ideia deste pequeno exercício foi plantar uma semente e experimentar para compreender de forma mais aberta sua receptividade nesse tipo de ambiente e projeto.

Reflexões iniciais

Da mesma forma, esses relatos e consolidações são apenas reflexões iniciais da continuidade da minha pesquisa pós-mestrado no âmbito da docência e do cotidiano da agência. Ainda há muito terreno teórico e prático a ser explorado quando se fala na conexão entre espiritualidade e cultura de projeto. O Brasil, em especial, é um país no qual a espiritualidade é parte da identidade da maioria da população e a ética de diferentes formas de espiritualidade atravessa os projetos pessoais, profissionais, sociais e ativistas de muita gente. Assim como precisamos de um olhar crítico sobre as práticas espirituais para evitar um uso abusivo, proselitista, que fira a laicidade de certos espaços, também é preciso compreender que a espiritualidade pode ser uma forma de incluir visões mais amplas e benéficas em projetos de diversas ordens.

Interessante para essa conexão pode ser a leitura de Designs for The Pluriverse de Arturo Escobar e Nem Vertical nem Horizontal de Rodrigo Nunes. Escobar encontra na filosofia budista e na sabedoria dos povos originários da América Latina sustentação para o que chama de Ontologias Relacionais, formas de ser e criar mundos mais afinadas com projetos mais participativos e menos coercitivos; Nunes ressalta a importância da Teologia da Libertação na linha histórica de atuação da esquerda como um exemplo de ação no mundo que gerou frutos concretos, não apenas conceitos. Mas isso, como se diz, é assunto para outro texto.


Nota complementar

O conceito de espiritualidade nesse texto ainda foi baseado em um artigo escrito por mim em parceria com Karine Freire e Carolina Barboza. A seguir, um trecho do artigo que trata do conceito:

“Partindo da compreensão de espiritualidade proposta por Brown (2020) e hooks (2021), apresentamos uma definição operacional para o conceito neste trabalho como sendo uma busca ativa por significado na vida, que passa por transcender a individualidade e reconhecer, mesmo que apenas no nível intelectual, a conexão com todas as formas de vida, ampliando a própria perspectiva. Por muitas vezes estar associada a religiões institucionalizadas, a espiritualidade sempre foi vista com reserva e antagonismo pela ciência como um todo. Essa perspectiva antagonista imiscuiu-se à cultura ocidental tradicional a partir do Iluminismo. Sendo influenciado por esta cultura, o design também se manteve afastado da espiritualidade e poucas são as conexões que se fazem entre essas duas áreas. Encontramos em Walker (2021), Akama (2018) e Ibarra (2020) pontes importantes nesse sentido.”

// novembro de 2023 //