Pensamento estratégico além da lógica militar

Foto: Claudia Palma

A ideia de estratégia como conhecemos hoje ainda é totalmente devedora da tradição militar grega e chinesa da antiguidade e europeia do início da era moderna (como conta Sir Lawrence Freedman em Strategy – A History). Ao ser adotada pelo meio empresarial na passagem do século XIX para o século XX, essa ideia de estratégia trouxe junto expressões que revelam um tipo específico de modelo mental – território, alvo, cadeia de comando, posicionamento e planejamento, entre outros. Esse modelo mental se tornou a base de correntes importantes da administração e, por consequência, do marketing e da comunicação. Herdamos todo um linguajar e uma forma de pensar nascida de uma das mais caóticas e sórdidas atividades humanas – a guerra.


Cena de 1892 Napoleon Wars no Steam.

Mas não precisa ser assim pra sempre. É possível buscarmos outras fontes de pensamento estratégico que não estejam 100% vinculadas ou que propaguem a lógica militar. Não apenas por questões morais, mas também por uma questão de afinidade entre método e contexto. Em outras palavras: o ambiente de negócios e comunicação hoje não cabe em muitas metáforas militares e não é preciso ser pacifista para perceber isso. Vamos a alguns exemplos.

O conceito de público alvo (já criticado e substituído muitas vezes por personas ou usuários, conceitos que também comportam críticas) pressupõe a existência de grupos amorfos que serão impactados por mensagens e, assim, se converterão à nossa vontade. Contudo, pesquisas na área de comunicação, administração e marketing há muito já questionam a ideia de pessoas 100% passivas sendo inoculadas inocentemente pela comunicação e pelo marketing. O protagonismo do público nesse processo é maior do que se pensa.

Da mesma forma, a noção de conquista de território e de eliminação de oponentes ignora a interdependência de concorrentes em determinados mercados nos quais nem sempre a eliminação de um suposto inimigo é uma coisa boa. Em vários segmentos, a existência de pequenos e médios empreendimentos que concorrem sustenta um ecossistema inteiro que, se não existir, seria eliminado por uma consolidação que poderia destruir a fertilidade do mercado e a possibilidade de opções ao consumidor. Nessa mesma linha, há algum tempo já se propaga os benefícios dos chamados frenemies, empresas que concorrem em um nível e colaboram em outro.

Mas e daí? Para onde correr se precisamos de teorias, métodos e frameworks alternativos à lógica ortodoxa de estratégia? As sugestões abaixo não são as únicas e nem se tenta fazer aqui um compilado abrangente e final, mas sim levantar a discussão e ventilar alguns nomes e campos que vejo terem pouco trânsito nos meios da comunicação e do marketing.

 

Podemos começar por dois livros que não são de estratégia mas que propõem visões alternativas do tema. O primeiro é Introdução ao Pensamento Complexo, onde o filósofo Edgar Morin apresenta de forma sintética sua visão filosófica e aborda o tema da estratégia nos capítulos “A complexidade e a ação” e “A complexidade e a empresa”. Morin propõe que estratégia não é programa, ou seja, não é composta de passos pré-determinados e estanques, mas utiliza a informação para se redesenhar o tempo todo. É mais Waze do que Excel. Muito do discurso estratégico em comunicação e marketing fala sobre essa flexibilidade mas na prática ainda é muito valorizado o plano cartesiano de passo a passo a ser implementado da forma mais exata possível e que raras vezes dura muito tempo intacto. Morin coloca a estratégia não como contrária à incerteza, mas como usuária da incerteza. A estratégia de Morin não tenta dominar os fenômenos, mas se mover de forma eficiente entre eles.

 

A segunda fonte para pensar estratégia com outra cabeça é o primeiro volume de A Invenção do Cotidiano. Aqui, o historiador e cientista social Michel de Certeau consolida alguns anos de pesquisa qualitativa sobre o dia a dia de pessoas comuns e, no capítulo “Estratégia e Táticas”, propõe um entendimento inusitado desses termos para quem está acostumado ao entendimento militar. A estratégia de De Certeau é exclusiva de quem detém o poder e, com isso, é capaz de não apenas ditar as regras do jogo mas onde e quando ele acontece; enquanto que a tática é a ação de quem precisa jogar as regras do jogo lance por lance, sem chances de uma visão geral totalizante, mas com sua relativa irrelevância e impotência permitindo encontrar e explorar brechas. Pense na relação que a imensa maioria das empresas, mesmo as grandes, têm com os espaços publicitários do Google e do Facebook/Instagram: tudo o que chamamos de estratégia digital nesses campos é, na verdade, pura tática na visão de De Certeau, porque se está sempre à mercê das definições das grandes plataformas, buscando explorar e alavancar as brechas nas regras.

A terceira fonte é o campo do Design Estratégico conforme proposto pelos pesquisadores em design da Politécnico de Milão e da Unisinos. Nos últimos 20 anos, vem se estabelecendo uma linhagem de pesquisa e prática que olha para a estratégia com a perspectiva do design – inicialmente italiano, mas pouco a pouco também latino-americano. O Design Estratégico considera que a estratégia é uma atividade coletiva, que deve incluir todos os atores que serão tocados pelos resultados do processo; metaprojetual, devendo pensar e refletir sobre si mesma em um nível metodológico; e visual-material, se valendo das múltiplas ferramentas do campo do design (e da arte) para gerar diálogos estratégicos, como a prototipação, a experimentação especulativa, os workshops e outros recursos que não são usuais nas propostas mais ortodoxas de pensamento estratégico (mesmo aquelas inspiradas no Design Thinking anglo-saxão).

Para conhecer um pouco mais dessa visão de estratégia, você pode fazer download gratuito de livros como “Design Estratégico para Inovaçao Social e Cultural” organizado pela Dra Karine Freire, “Cenários Panoramáticos – uma metodologia para projetação em design estratégico”, escrito pela Dr Cláudia Palma, o artigo “Strategic design: where are we now?” da Dra Anna Meroni ou assistir esse vídeo rápido da designer de serviços Carla Link.

Nem sempre essas referências alternativas ao pensamento estratégico tradicional tem aplicação direta ou intuitiva. É preciso dar uma mergulhada, ler, comparar com o que se conhece, mixar, remixar e criar aplicações em projetos de estratégia de comunicação e marketing. Não são fórmulas ou frameworks prontos, mas abordagens conceituais que podem dar uma chacoalhada nos conceitos enraizados que já temos em nós mesmos. Isso não quer dizer também que os conceitos clássicos não tenham sua função e momento. Vamos com calma, porque um estrategista com boas referências não quer guerra com ninguém.

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Na DZ, usamos a abordagem do Design Estratégico combinada com os processos e frameworks de Planejamento de Comunicação mais tradicionais. O nosso framework de Planejamento de Presença Digital é um exemplo (escrevi sobre ele aqui). Por ser um framework mais aberto, ele permite uma variedade de abordagens dentro de cada etapa, muitas delas trazidas do campo do Design.

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// Publicado originalmente em julho de 2022 no LinkedIn. //