“Isso aí serve pra alguma coisa?” Acho que essa é uma das perguntas que pesquisadores mais escutam e quando concluí meu mestrado em design (dissertação resumida nesta seção), não foi diferente. Por trás disso está a ideia, calcificada no imaginário brasileiro, do desperdício que é estudar, ainda mais se não for algo “voltado ao mercado”; a questão também traz embutida uma lógica binária (e boba) de teoria vs. prática e útil vs. inútil. A resposta é sempre um pouco mais complexa: sim, isso aí é prático, útil e mercadológico; mas muito da prática, da utilidade e do valor de mercado nasceu de teorias, inutilidades e de pesquisa acadêmica “pura”. Nesse texto, busco fazer uma síntese dessa dança e relatar algumas relações entre o design estratégico e o meu dia-a-dia de profissional de publicidade e de voluntário em projetos sociais nos últimos 7 anos.
Qual design estratégico?
Mas, primeiro, vamos fazer algo que o mercado poderia aprender a fazer mais com a academia: definir conceitos com mais cuidado e reflexão, respeitando suas origens enquanto conhecimento. O que é, afinal, design estratégico? Design, possivelmente, é um dos campos que mais recebeu sobrenomes nas últimas décadas – design thinking, design de serviços, design de interface, design de experiência, design de interiores, design de conteúdo, design de carreira, design de vida, design de sobrancelhas… Não apenas existem muitos designs, mas para cada um deles há diferentes entendimentos e usos. E isso inclui o design estratégico. Por isso, o design estratégico ao qual me refiro aqui é um bem específico: é uma abordagem desenvolvida inicialmente no Politécnico de Milão no final dos anos 90 que se tornou eixo de pesquisa e prática não apenas lá, mas também na pós-graduação em Design na Unisinos (RS) desde meados dos anos 2000. Entre dezenas de artigos acadêmicos, dois livros servem de base para entender essa abordagem: Design Estratégico em Ação (em oferta na editora) e Design Estratégico para Inovação Cultural e Social (PDF gratuito). Também vale dar uma olhada neste vídeo curto.
Esse design estratégico, segundo uma corrente também específica de pesquisadores italianos e brasileiros, considera a estratégia um processo coletivo, sistêmico, disruptivo e orientado à inovação social e à sustentabilidade. Nasce a partir da necessidade de enfrentar questões sociais emergentes e que não têm resposta nas teorias e práticas mais pragmáticas. Influenciados pela combinação de design, arte e ativismo social, pesquisadores e praticantes dessa vertente trocam a lógica cartesiana da estratégia clássica e da inovação orientada pelo mercado pelo pensamento complexo e pela inovação orientada pelo design. Mais recentemente, também encontramos no universo desse design estratégico perspectivas ecofeministas, antirracistas e pluriversais.
Aplicações no mercado, universidade e projetos sociais
Planejamento estratégico da DZ projetado e facilitado por Alessandro Jacoby.
Uma das minhas primeiras ações ao ter contato com o trabalho desse povo foi propor aos sócios da DZ Estúdio, onde sou Head de Planejamento, a abandonar o planejamento estratégico tradicional e abraçar o design estratégico contando com duas designers estratégicas, Carla Link e Mirela Rosa. Em janeiro de 2018, iniciamos este processo e, desde então, já realizamos cerca de 22 movimentos estratégicos orientados por diferentes profissionais e ferramentas de design, sem uma fórmula geral pronta e contando com a participação de diferentes atores das nossas relações – indo dos sócios majoritários até clientes, parceiros e fornecedores, incluindo alguns momentos participativos com todos os nossos colaboradores.
Assim, nos últimos 7 anos, construímos, revisamos ou refinamos Proposta de Valor, Modelo de Negócios, Modelo de Operação, Branding, Cultura e Marketing; treinamos lideranças, fizemos nossa transição para a operação officeless e depois híbrida, construímos projetos de inclusão e diversidade, entre outras demandas, todas definidoras da estratégia da agência e todas através de métodos, processos, ferramentas e ideias derivadas da abordagem de design que citei logo cima. Embora eu tenha iniciado e nutrido essa mudança, é importante ressaltar que a cultura da agência e meus colegas de liderança abraçaram e muitas vezes puxaram a frente de diversos projetos.
Em paralelo à estratégia organizacional da DZ, também fui consolidando, junto com minha equipe, uma forma nossa de fazer estratégia de comunicação (artigo sobre o framework acima aqui). Não abandonamos os fundamentos do mercado estabelecidos por nomes como Stephen King, Stanley Pollit e John Steel, nem negamos as novas influências de Mark Pollard, Julian Cole e Baiba Matisone. Mas aos poucos fui introduzindo no dia-a-dia de nosso trabalho de planejamento de campanhas, conteúdos e plataformas as ideias que encontrei em Ezio Manzini, Francesco Zurlo, Roberto Verganti, Anna Meroni, Roberta Tassi, Karine Freire, Ione Bentz, Carlo Franzato, Cláudia Palma, Gustavo Borba, Lesley Ann Noel, Yoko Akama e María Cristina Ibarra, entre outras.
Essas autoras e autores foram a base, também, de parte das minhas aulas nas graduações de Comunicação Digital e Gestão para Inovação e Liderança na Unisinos entre 2020 e 2023. Inspirado nas propostas dos pesquisadores de design em educação Gustavo Borba e Melissa Lesnovski, levei para as turmas não só a proposta de inovação do design estratégico, mas também a sua dinâmica de interação, tratando o percurso pedagógico quase como um longo workshop de design participativo onde o projeto de final de semestre ia se construindo junto com o desenho do conhecimento com variadas formas de investigação e projetação. Além da docência, também pratiquei esse design estratégico na minha atuação voluntária em centros budistas e associações da sociedade civil, onde a proposta mais horizontal, sistêmica e aberta do design estratégico foi fundamental para que eu pudesse apoiar grupos de trabalho em projetos organizacionais ou de comunicação que não conseguiam ser resolvidos com métodos tradicionais.
Essa variedade de ambientes onde pude aplicar o que venho pesquisando e estudando é consequência natural da abordagem transdisciplinar e permeável que marca o design estratégico da forma como aprendi. Se essa amplitude torna difícil criar uma fórmula ou um passo a passo que permita a replicação automática dos seus processos, também impõe cuidado, atenção e criatividade em cada contexto. Ainda assim, sentindo a necessidade de entender e explicar o que há de similar na minha atuação em cada um desses espaços tão diferentes, consolidei pra mim mesmo (e agora aqui, de forma um pouco mais pública), quatro princípios comuns de quase todos os projetos comentados até aqui.
Primeiro princípio: estratégia pelo coletivo
O primeiro princípio é o entendimento da formulação de estratégias organizacionais como um projeto coletivo, que leva em consideração os múltiplos pontos de vista dos múltiplos atores envolvidos nas múltiplas relações, fluxos e processos que configuram uma organização, reconhecendo que muitas vezes essas relações, fluxos e processos definem muito mais uma organização do que seus limites formais jurídicos ou administrativos. Essa frase complicada aí quer dizer simplesmente sair das salas fechadas da alta diretoria e dialogar estrategicamente com as pessoas afetadas pela estratégia em diversas fases do projeto. Partir desses pressupostos, seja na agência, em projetos sociais ou sala de aula, implicou em buscar ou construir processos e ferramentas diferentes das tradicionais.
Segundo princípio: metaprojeto
O que nos leva ao segundo princípio: abrir, explorar possibilidades e projetar o próprio projeto, ou o metaprojeto. O designer Andries Van Onck propôs o metaprojeto como a criação de um espaço prévio ao projeto, mais geral e abstrato, que permite o diálogo e a configuração de possibilidades – dentre as quais os projetistas irão escolher a melhor para o projeto, seja de um produto, serviço, interface ou de uma estratégia. Na tradição de pesquisa e prática do design italiano, o metaprojeto é um corpo de saberes que precede ou acompanha o projeto fortemente embasado em pesquisa e interpretação dos contextos socioculturais. O metaprojeto também inclui, segundo contribuição de Cláudia Palma a esse texto, “a inteligência que orienta as tomadas de decisão no percurso projetual, em a priori nem a posteriori”, ou seja metaprojeto nem sempre tem lugar definido no tempo. Segundo Silvia Pizzocaro, o metaprojeto não prescreve, mas propõe tudo aquilo que é projetável a partir de uma realidade complexa. Assim surge a ideia de “cenários futuros”, campos amplos de projeto materializados com uma grande variedade de técnicas, mas em geral mesclando visualidades e textos com o objetivo de possibilitar que os atores envolvidos no projeto possam dialogar estrategicamente e criar no nível metaprojetual. Em todos âmbitos de atuação que citei ali em cima, usei a ideia de cenários, nem sempre com esse nome e na sua concepção formal, mas em seu conceito prático de base material e visual para deliberações.
Terceiro princípio: deliberação visual, material e ambiental
Assim, esse terceiro princípio se desdobra do segundo: a deliberação visual, material e ambiental. Como alertou Ezio Manzini, enxergar de forma clara o presente já é uma tarefa complexa, que dirá imaginar coletivamente um futuro desejável. Para ele, um dos grandes obstáculos que as comunidades enfrentam para avançar em direção a futuros melhores é a dificuldade de encontrar processos de diálogo que ajudem a construir visões compartilhadas e os cenários facilitariam essa tarefa. Prototipar “como seria o mundo se…” convoca as pessoas envolvidas no projeto a saírem do nível concreto do seu dia-a-dia e imaginem visualmente e materialmente outras possibilidades para criar ou expressar posições e posteriormente tomar decisões. Neste livro, François Jégou e seus colegas de pesquisa chamam isso de “Deliberação Visual” e defendem que isso torna o processo mais democrático. Fred Vam Amstel vai além da visualidade 2D dos moodboards ou 3D dos protótipos e propõe o uso do Teatro do Oprimido de Augusto Boal para uma abordagem crítica de deliberação mais viva, que eu chamaria de ambiental.
Quarto princípio: sentipensar
Uma participação mais democrática em processo de design estratégico não depende apenas de métodos ou ferramentas, as quais podem ser sempre distorcidas. O compromisso com uma construção mais coletiva de estratégia parte – ou deveria partir – do espírito crítico e íntimo dos envolvidos, especialmente de quem está, de alguma forma, conduzindo o processo. Daí a necessidade de, como propõe María Cristina Ibarra a partir de Arturo Escobar e Fals Borda, superar dicotomias modernas como razão/emoção e abraçar um design sentipensante. É muito comum que se fale, no mercado, sobre a necessidade de se incentivar o pensamento estratégico, de um ponto de vista racional, como se os sentimentos não tivessem papel nenhuma na formulação de uma estratégia.
Tendo o mundo corporativo abraçado temas como saúde mental e vulnerabilidade a partir de hits de Ted Talks como Brené Brown e Simon Sinek, parece mais fácil incluir o sentir no pensar estratégico, mas como Karine Freire e eu escrevemos, poucas pessoas tem no seu cotidiano algum tipo de prática contemplativa estruturada e contínua que permita acessar seu sentipensar de maneira deliberada e profunda. Pra nós, é clara a necessidade de um maior “letramento em sentipensar” que vá além das iniciativas isoladas como, por exemplo, warm ups ou check ins de workshops.
Princípios arbitrários, emergentes e práticos
Esses quatro princípios, reforço, não constituem uma tentativa de criar uma fórmula. Eles foram apenas a maneira como comecei a organizar uma resposta quando perguntado sobre a relação do design estratégico estudado e as minhas atividades projetuais no mercado e na área social. Comecei a perceber que os projetos tinham em comum isso:
- a busca por uma estratégia a partir do coletivo;
- o metaprojeto intencional;
- a deliberação visual como um método necessário de participação;
- e o sentipensar na busca por um comportamento ético e democrático de minha parte como designer estratégico ou facilitador.
Esses quatro princípios emergiram da prática – inspirada ou impulsionada por um amplo arcabouço teórico que inclusive transcende o campo do design.
Diga-se de passagem que o foco da minha carreira no mercado impõe o desafio constante de manter o estudo e a pesquisa. Para compensar a falta de uma convivência com referências teóricas, como aconteceria naturalmente na academia, sempre que tenho um desafio de projeto, me obrigo a ir atrás delas – de preferência das que ainda não fazem parte do meu repertório. É bastante comum eu encontrar algo que poderiamos chamar de útil, aplicável, operável, concreto em meio a ideias marginais, conceituais, abstratas. O mínimo que se deveria esperar de quem se diz designer estratégico é ter justamente estratégias própria para projetar a partir de encontros inusitados.