Movimento Down: um benchmark para sites de síndromes & doenças raras

Um dos momentos mais angustiantes para quem tem um filho com uma síndrome ou uma doença rara é o momento do diagnóstico. Vocês estão há meses envolvidos com sintomas estranhos, exames invasivos, gastos inesperados, quando finalmente descobrem qual é a causa de tudo aquilo. Por um lado, o diagnóstico traz um certo alívio pois a partir desse ponto sabe-se a direção a tomar. Por outro lado, esse caminho é geralmente sinuoso, esburacado e muito mal sinalizado. Mesmo com o apoio de bons médicos, é fundamental aos pais e cuidadores terem acesso direto a conteúdo sobre aquela síndrome ou doença rara, para aprenderem, para desenvolverem um mínimo de autonomia. Mas quando a porta do consultório é fechada e a família volta pra casa, é muito comum que, em vez de conteúdo confiável, claro, estruturado e acolhedor, ela se depare com coisas como isso:

Imagens como essa foram o cartão de boas-vindas à nossa família no universo das condições genéticas raras quando nosso filho recebeu o diagnóstico da Síndrome de Prader-Willi em 2012. Embora estivéssemos (e ainda estamos) nas mãos de ótimos médicos e terapeutas, houve um momento em que precisamos ir para a internet aprender mais sobre a síndrome. Sendo Prader-Willi uma condição ainda desconhecida, os resultados que encontramos no Google eram, em sua maioria, páginas médicas com uma abordagem científica, dura, que mais nos confundia e assustava do que ajudava. As duas ou três páginas úteis e minimamente acolhedoras eram de associações estrangeiras, já que, na época, ainda não existia a Associação Brasileira da Síndrome de Prader Willi. O conteúdo em português era quase todo dedicado ao estudo de genética. Do ponto de vista do ambiente digital, estávamos completamente desamparados.

Nos 5 anos seguintes, uma questão ficou na minha cabeça: qual é a melhor forma de disponibilizar informação sobre síndromes e doenças raras na internet?

Isso se tornou um projeto particular e passei a prestar atenção em fontes que me chamavam a atenção por seu caráter democrático e facilitador no que diz respeito a disponibilizar informações de síndromes e condições raras. Foi assim que acabei conhecendo o Movimento Down, um website que parecia ter, senão todas, ao menos as principais qualidades que pais e cuidadores de pessoas com deficiência precisam quando querem informação digital. Que qualidades são essas? Abaixo eu listo os 4 pilares do que considero um benchmark nesse campo. Esses 4 pilares são o resultado de um Estudo de Caso realizado para o TCC da minha recente graduação em Relações Públicas (2017) baseado nas teorias de estudiosos de interface, comunicação e design como Steve Johnson, Cicilia Peruzzo e Villém Flusser. Vamos a eles.

1. UMA INTERFACE CONTEMPORÂNEA

Diferentemente de muitos sites médicos ou ligados a síndromes raras, o Movimento Down segue práticas atualizadas de interface, o que confere à busca e navegação qualidades como coerência e organização, evitando adicionar complexidades à já desafiante tarefa de cuidar ou de ser uma pessoa com deficiência em nossa sociedade; fácil acesso a todo escopo de conteúdo, o que mitiga ansiedades; e por último, mas não menos importante, a atratividade gráfica, fugindo da estética do “coitadismo” ou da precariedade que frequentemente jogam o universo da deficiência “pra baixo”. comunidades.

Em Cultura da Interface, Steve Johnson compara o impacto da arquitetura das interfaces com o urbanismo ao dizer que “o modo como escolhemos organizar nosso espaço revela uma enormidade sobre a sociedade em que vivemos — talvez mais que qualquer outro componente de nossos hábitos culturais”. Sendo a interface o artefato cultural que modela o espaço virtual, exigir que a comunicação das comunidades excluídas tenha interfaces comparadas ao que de melhor se faz na Internet guarda alguma semelhança com exigir as mesmas condições de moradia para um bairro nobre e uma periferia.

2. UMA LINGUAGEM TUTORIAL

É muito comum que, especialmente nos primeiros meses ou anos após o diagnóstico, os pais e cuidadores tenham suas vidas viradas de cabeça pra baixo. Encontrar uma fonte de informação sobre uma síndrome com uma linguagem tutorial é, muitas vezes, como encontrar uma luz no fim do túnel do ruído digital. Essa linguagem tutorial se manifesta no Movimento Down com percursos sugeridos de conteúdos, menus, cartilhas e passo-a-passos. Ou seja, o Movimento Down é um website que conduz, que explica, que sugere percursos, o que responde não só às necessidades informacionais dos pais e cuidadores, mas também à necessidade emocional por um mínimo de ordem e estabilidade.

3. UMA ESTRUTURA SIMPLES

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O texto é o formato predominante do Movimento Down e geralmente apresentado em páginas simples, com muito hiperlinks para outras páginas internas, formando um grande banco de dados cuja navegação não tem maiores mistérios para quem acessa a internet. Nesse sentido, o Movimento Down lembra muito o que poderíamos chamar de Web 1.0. Ao não exigir, nem permitir que seus visitantes criem perfis e publiquem conteúdo, como é característico da Web 2.0, o Movimento Down consegue preservar sua relevância ao longo do tempo, seu caráter de banco de dados referencial.

Fosse ele uma rede social ou um wikisite, talvez exigisse um trabalho de edição e supervisão constantes que inviabilizaria sua existência. Fosse ele um blog, a necessidade de ter uma capa com atualização constante tiraria o foco das informações básicas, porém essenciais sobre a sobre a síndrome. A combinação de páginas em texto com hiperlinks é hoje considerada corriqueira, mas seu poder e suas potencialidades não deveriam ser desprezados.

4. POR TRÁS DE TUDO, A MENTALIDADE INCLUSIVA

Os três primeiros pilares não surgiram no vácuo. Eles são fruto da combinação de conhecimento técnico relevante com uma forte mentalidade inclusiva. Tanto de forma explícita, em sua página de apresentação, quanto em indícios que saltam aos olhos de maneira repetida, percebe-se que o Movimento Down reflete uma disposição para colocar-se no lugar das pessoas que estão enfrentando as dificuldades e ajudá-las de maneira prática e efetiva. A ausência de pirotecnias digitais no website, de uma opção pela simplicidade e pela eficiência, é uma forte evidência de que as pessoas por trás dele estavam mais interessadas em ajudar do que em aparecer ou impressionar. A ênfase na orientação de como proceder perante a enorme variedade de obstáculos enfrentados pelos pais, cuidadores e pessoas com deficiência (saúde, educação, cidadania) demonstra também a vontade de conceder autonomia a todos os envolvidos. E não existe maior forma de compaixão do que promover autonomia. Esse é o verdadeiro objetivo da inclusão.

O FUNDAMENTO DOS QUATRO PILARES

Toda escolha técnica é fruto não apenas de repertório profissional, mas também de uma visão de mundo. Essa noção é compartilhada, cada um à sua maneira, por todos os autores que serviram de referencial teórico para o meu trabalho. Para Lev Manovich, os códigos que usamos oferecem um modelo do mundo, portanto tudo que construirmos com esse código trará uma visão previamente embutida. Para Steve Johnson, os arquitetos de interface são responsáveis pela ágora do século XXI.

Então, é importante que todo aquele envolvido em um projeto de website que se dedique a ajudar lembre de Villém Flusser quando ele diz que todo ato imaginativo exige “a técnica, o código e o outro”; sobretudo, que lembrem de Cicilia Peruzzo quando ela propõe que:

[…] o vínculo a um movimento social ou organização de base, profissionalmente ou como membro voluntário, significa estar em sintonia com a lógica que motiva e sustenta as posturas de tal ator social. Em ambos os casos, não se trata da atuação profissional de alguém que vem de fora e que interpela e invade, mas que respeita a dinâmica dos grupos e entidades, de maneira que, as reflexões, o conhecimento e as decisões emerjam de dentro deles e sejam construídos em conjunto.

O quanto os profissionais por trás do website Movimento Down são ligados à Síndrome de Down é uma questão que exige maior investigação (esse e outros pontos estarei explorando no mestrado). Mas não é preciso ir fundo para entender que, de alguma forma muito poderosa, as necessidades da comunidade neste caso foram endereçadas com precisão. Seja qual for o metamodelo que emerge desse exemplo, uma coisa é clara: precisamos mais disso no mundo.


Meu TCC sobre o Movimento Down pode ser baixado na íntegra em PDF neste link. Ali você vai encontrar toda a minha proposta de pesquisa, metodologia, referenciais teóricos, investigação, conclusão e bibliografia.


No Mestrado, acabei ampliando o escopo da pesquisa. Em vez de me focar apenas na estratégia de comunicação, acabei buscando entender as estratégias de organizações de pessoas com doenças raras e propondo um método para projetar essas estratégias vinculado ao Design Estratégico. O resumo desse trabalho está na seção Mandala Estratégica para Inovação Social.


//  Publicado originalmente no Medium em agosto de 2017 //